sábado, 25 de maio de 2013

A Porta Lateral

Nas suas Memórias Arqueológico-Históricas do Districto de Bragança, o Abade do Baçal (Francisco Manuel Alves, 1865-1947) faz referência a uma curiosa ocorrência com que ilustra a passagem do exército aliado anglo-português por terras mirandesas: um inscrição, em caracteres cursivos, na porta lateral da Igreja Matriz de Malhadas:

Gen. Lecor
Maio 24, 1813



Igreja Matriz de Malhadas (foto retirada de

http://miranda_do_douro.voila.net/malhadas.htm)
Indica o insigne historiador bragantino que fora o próprio general Lecor quem o escrevera. 

Este pormenor da História, visto à lupa, diz respeito ao então Marechal de Campo (hoje Major-General) Carlos Frederico Lecor (1764-1836), comandante da brigada portuguesa da 7.ª Divisão, constituída pelos Regimentos de Infantaria n.º 7 e 19 (respetivamente, de Setúbal  e Cascais) e o batalhão de Caçadores n.º 2 (de Moura). A brigada, que em julho desse ano será numerada como a 6.ª, forte de 2,102 homens (de acordo com dados do mês anterior), acabava de chegar a Malhadas, localizada a cerca de 10 quilómetros de Miranda do Douro, para onde fora enviada toda a 7.ª Divisão, comandada pelo Lord Dalhousie.

Afastando a lupa, deixando ver o mapa maior, esta brigada tinha partido de Moimenta da Serra, a 14 de maio, junto com a 3.ª Divisão, após lá ter invernado no seguimento do fim da campanha de 1812. As ordens, emitidas no dia anterior pelo Marquês de Wellington, ou ‘Douro’, como era conhecido entre os nossos soldados, ordenaram todo o exército a agrupar-se em dois grandes aglomerados de tropas: um primeiro, sobre o comando do general Sir Rowland Hill, em torno de Ciudad Rodrigo, constituindo a ala direita, e outro, o maior, aos cuidados do general Sir Thomas Graham, na fronteira nordeste portuguesa, no distrito de Bragança, com o ambicioso objetivo de fazer cumprir o Plano de Wellington para 1813.

A concentração na fronteira nordeste fez-se em três pontos distintos:
- Bragança, mais a norte (com a Divisão espanhola da Galiza à esquerda), constituída pelas Brigadas de cavalaria pesada de Anson e Ponsoby, vindas respetivamente de Braga e Guimarães, de onde partiram a 13 e 17 de maio, a 1.ª Divisão de infantaria (exclusivamente britânica), vinda de Viseu e Mangualde a 13, e a Brigada portuguesa independente de Pack (futura 1.ª Brigada de infantaria), vinda de Penafiel também a 13. Estes unidades chegaram entres os dias 22 e 23 de maio;
- Vimioso & Outeiro, ao centro, constituída pela Brigada portuguesa de cavalaria ligeira de D’Urban e pela Brigada de cavalaria pesada alemã de Bock, vinda de Santo Tirso no dia 14 de maio, as 3.ª e 5.ª Divisões de infantaria [1], vindas respetivamente de Moimenta da Beira (a 16 de maio) e Lamego (a 14), por via de São João da Pesqueira, onde atravessaram o Douro; e, finalmente, a Brigada portuguesa independente de infantaria de Bradford (futura 10 .ª). De acordo com os Supplementary Dispatches, a sua data de chegada a Vimioso e Outeiro ocorreu entre os dias 21 a 24 de maio;
- Miranda do Douro e Malhadas, ao sul, formada pela Brigada de cavalaria Hussarda de Grant, as 4.ª, 6.ª e 7.ª Divisões de Infantaria [2], vindas da área de São João da Pesqueira [3], de Seia e de Moimenta da Serra. As duas últimas divisões partiram dos seus locais de acantonamento no dia 14 de maio e chegaram ao seu destino nos dias 23 e 24, respetivamente, cruzando o Douro na barca de Pocinho. A Brigada dos Hussardos, como é referida nas ordens, terá chegado a Miranda ou a 26 ou 27, sem indicação nas fontes de onde terá partido.

Grande parte da artilharia não agregada às divisões, e que estava alocada a esta ala, como a brigada portuguesa de 18 libras e a Brigada de reserva, ou o trem de pontão para a travessia de rios, deslocou-se para Miranda do Douro.

Chegados aos seus pontos de reunião, toda esta ala esquerda do exército, constituída pela grande maioria dos recursos do exército aliado, estava pronta para, em três colunas, cada uma delas partindo das áreas descritas acima, penetrar em território espanhol e cumprir o Plano de Wellington. A 26 de maio, todas estas tropas colocaram-se em movimento, com as respetivas forças de cavalaria na vanguarda.

Voltando ao início, não sei qual a intenção de um dos seus comandantes de brigada, Carlos Frederico Lecor, escrever ou mandar escrever o seu nome e a data na porta lateral da Igreja Matriz de Malhadas, um templo simples, de traça gótica, dedicado a Nossa Senhora da Expectação, naquele dia de 24 de maio, e que ontem cumpriu o seu humilde bicentenário.
Essa porta é escondida por um alpendre e dá acesso direto à nave única da igreja, pelo que não tinha como objetivo decerto a identificação; pouco provável seria também que Lecor ali posicionasse o comando da brigada ou ali ficasse a residir. Posso apenas calcular que tenha sido promessa, ou a encomenda da alma, ou o pedido de intercessão à Nossa Senhora pelo futuro. Se assim for, parece-me adequado que seja feito àquela faceta do culto mariano que celebra o porvir, o que virá, a expectação.


[1] Cada uma destas divisões tinha uma brigada portuguesa de infantaria, na 3.ª Divisão, a Brigada de Power (futura 8.ª Brigada: Regimentos de Infantaria n.º 9 e 21 e Batalhão de Caçadores n.º 12), e na 5.ª, a Brigada de Spry (futura 3.ª Brigada: Infantaria 3 e 15 e Caçadores 8).


[2] Cada uma destas divisões tinha uma brigada portuguesa de infantaria, na 4.ª Divisão, a Brigada de Stubbs (futura 9.ª Brigada: Infantaria 11 e 23 e Caçadores 7); na 6.ª a Brigada de Madden (futura 7.ª Brigada: Infantaria 8 e 12 e Caçadores 9), e na 7.ª, a Brigada de Lecor (futura 6.ª Brigada: Infantaria 7 e 19 e Caçadores 2).


[3] As várias fontes consultadas não permitem identificar a localização exata onde a 4.ª Divisão invernou, mas Oman coloca-a junto ao rio Douro, algures na área de Moimenta da Beira e São João da Pesqueira. Seja como for, e ainde de acordo com Oman, o quartel general desta divisão estava localizado em São João da Pesqueira, em início de dezembro do ano anterior.
 


Bibliografia

- Supplementary despatches and memoranda of Field Marshal Arthur, duke of Wellington, K. G (Volume 14), John Murray: Londres, 1872;

- Abade do Baçal, Memorias archeologico-historicas do districto de Bragança : ou repositorio amplo de noticias chorographicas (vol. 4), Coimbra : Imprensa da Universidade, 1911-1918;

- René Chartrand, The Portuguese Army of the Napoleonic Wars (v. 3) (Col. Men-at-Arms, n.ºs 343), Oxford, Osprey Pub., 2000;

- Sir Charles Oman, A History of the Peninsular War (Volume VI), Green Hill Books: Londres, 1996 (1922).


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Farewell Portugal!

Passam hoje duzentos anos sobre a entrada do futuro duque de Wellington em Espanha, deixando Portugal para não mais voltar, marcando simbolicamente o início da gloriosa campanha aliada de 1813 cujo resultado seria a libertação da Península Ibérica do poder napoleónico.

A tradição narrativa da Guerra Peninsular diz-nos que o duque, no momento em que atravessava o ribeiro que marca a fronteira luso-espanhola, gritou:

Farewell Portugal! I shall never see you again.

A expressão surge pela primeira vez, embora apenas Farewell Portugal, no quinto volume da obra clássica de Sir William Napier, History of the War in the Peninsula and the south of France:
«A grand design and grandly it was executed! For high in heart and strong of hand, Wellington’s veterans marched to the encounter, the glories of twelve victories played about their bayonets, and he their leader was so proud and confident, that in passing the stream which marks the frontier of Spain, he rose in his stirrups and waving his hand, cried out «Farewell Portugal!.»[1]

Este ato parece coadunar-se pouco com a personalidade de Wellington e a grandiloquência de Napier faz-nos por vezes desconfiar da sua verosimilhança.


Curso de água próximo de Castro de Alcañices, junto à  fronteira luso-espanhola,  no caminho que liga Miranda do Douro ao rio Esla.
(Foto: Paulino Preto)

Recentemente, na sequência de uma discussão sobre o assunto, Steven H. Smith, colaborador no fórum do site Napoleon Series, indicou a obra The life of Wellington: the restoration of the martial power of Great Britain  de Sir Herbert Eustace Maxwell (Bart.), onde se encontra explicada a origem da história e a fonte de que se serviu Napier.

Parece que a história foi contada a Napier por Sir Rufane Donkin, que por seu lado a ouviu contar ao general Sir Thomas Picton, considerado a verdade em pessoa. Deixamos aqui a citação do excerto da carta de Donkin para Napier:
«Picton told me a strange story. He was riding with Lord W. at the head of the advanced guard, when they crossed a rivulet which was the boundary of Portugal; on which Wellington turned round his horse, took off his hat, and said 'Farewell, Portugal! I shall never see you again.' This was so theatrical — so unlike Wellington — that I should say at once it cannot he true; but Picton, who told it me, was truth itself" (unpublished letter from Sir R. Donkin to Col. William Napier).»[2]

Ora sabe-se que Wellington entrou em Espanha a 22 de Maio de 1813 pela fronteira da Beira para Ciudad Rodrigo e nesta altura o general Picton encontrava-se em Trás-os-Montes comandando a 3ª divisão, parte da ala esquerda do exército aliado. Wellington só se reúne à ala esquerda no dia 30 quando esta já se encontrava em Espanha nas margens do rio Esla. Parece-me pois que se a história, contada em segunda mão por Donkin, tiver algum fundo de verdade deverá ter tido lugar na raia transmontana/zamorana mas não com Wellington na vanguarda do seu exército. 
Napier não perdeu a oportunidade de usar a história para «dourar» a sua narrativa e a partir daí o episódio surge descrito quer nas numerosas biografias de Wellington quer em muitas outras obras sobre a Guerra Peninsular. 


[1] History of the War in the Peninsula and the south of France, por Sir William Napier. 1836, Vol. 5, p. 513.
[tradução, jqn] «Um sublime desígnio e sublimemente executado! Intensos de coração e fortes de mão, os veteranos de Wellington marcharam ao encontro, as glórias de doze vitórias obtidas pelas suas baionetas, e ele seu líder estava tão orgulhoso e confiante, que ao passar o curso de água que marca a fronteira de Espanha, levantou-se nos seus estribos e acenando com a mão, clamou «Adeus, Portugal!»

[2]The life of Wellington: The restoration of the martial power of Great Britain por Sir Herbert Eustace Maxwell (Bart.). (4th edition, 1900), Vol. 1, p. 310.
[tradução, jqn] «Picton contou-me uma estranha história. Ele estava a cavalgar com Lord W. à cabeça da vanguarda, quando cruzaram um ribeiro que era a fronteira de Portugal; nessa altura Wellington virou o seu cavalo, tirou o seu chapéu, e disse ‘Adeus, Portugal! Nunca mais te verei.’ Isto foi tão teatral – tão pouco próprio de Wellington – que eu devo dizer desde logo que não podia ser verdade, mas Picton, que foi quem me disse, é a verdade personificada (carta não publicada de Sir R. Donkin para Cor. William Napier)»